Não raro os oráculos se referem às decisões que tomei nos últimos anos de forma misteriosa, indicando que em alguma delas mora a resposta para os questionamentos com os quais lido hoje. O Teledipity, por exemplo, sugere essa viagem no tempo com frequência: nas previsões de 2024, ele volta aos meus anos de adolescência, mencionando os “projetos que comecei”, os “sonhos que passei a ter”, as “coisas que me marcaram” — movimento que faz sentido não só porque a nossa vida é mesmo um resultado de todas as pequenas coisas que fazemos, mas também porque estou, de acordo com os gurus da numerologia que ditam tais previsões, prestes a “fechar um ciclo” (sic), então nada mais justo que voltar ao início dele para tentar entender melhor o que está acontecendo e por quê.
Na primeira semana deste ano, em uma videochamada com os meus melhores amigos, comentei que tinha a sensação de ter dormido em 2023 e acordado em 2014. Os motivos eram vários: estar sozinha em um lugar novo com todas as pessoas que eu amo longe demais; ter passado a virada de ano desacompanhada; ter stalkeado uma ex-melhor-amiga daquela época alguns dias antes; ouvir meu melhor amigo contar absurdos comuns à nossa adolescência; sentir que eu não tinha uma casa para a qual voltar, mesmo depois de anos construindo essa casa com minhas próprias mões. Era um comentário inocente e engraçadinho, mas me vi, aos poucos, devorada por ele, de modo que se tornou impossível parar de traçar paralelos entre o agora e o dez anos atrás.
Como nos filmes de viagem no tempo, quando a protagonista de repente acorda e é uma pessoa completamente diferente, mas que na verdade é ela mesma, eu de repente me olhava no espelho e via uma adolescente de 16 anos tentando navegar as águas terríveis do ensino médio. A diferença significativa, porém, é que, feliz ou infelizmente, eu não estava mesmo de volta ao meu corpo de dez anos atrás e não tinha a chance de efetivamente mudar alguma coisa na minha realidade de agora. O que me restava, portanto, era sentar comigo mesma e começar uma conversa.
Durante a maior parte da minha vida, fui uma pessoa muito dedicada a agradar os outros. Mais que isso, estive sempre muito disposta a ouvir os conselhos que me eram oferecidos por pessoas que, na minha cabeça, sabiam muito mais sobre a minha vida do que eu mesma apenas pelo fato de serem mais velhas ou (teoricamente) já saberem como o mundo funciona. Não me ocorria que com o tempo (de vida, de carreira) dá pra acumular burrice também (cf. aquele tweet do Maurílio), de modo que fui uma criança que não fazia perguntas, pouco curiosa e pouco inventiva — a favorita de grande parte dos adultos com quem convivi.
Minha imaginação (as pequenas aventuras de escrita, guardadas em cadernos ou em pastas com senha do Windows 97) estava restrita aos exercícios de fuga através do outro — e esse “outro” em geral era o Dougie Poynter, figura indiscutivelmente capaz de me amar, de cuidar de mim e de me tirar daquela cidade para me apresentar o maravilhoso mundo londrino —, não sendo, portanto, uma tentativa real de reinterpretar um mundo que eu não estava sequer disposta a conhecer por conta própria, muito menos questionar. Fui uma criança do teatro, eu gosto de dizer, mas nunca aprendi a improvisar, a lidar com a vergonha, a soltar o meu corpo. E infelizmente fui uma adolescente ainda pior, alheia às dinâmicas de micropoder ao meu redor, blasé e um pouco sonsa, nada preocupada com o que acontecia com aquelas pessoas e naqueles ambientes porque minha cabeça estava vivendo dali alguns anos, quando, eu tinha certeza, nada daquilo importaria.
Só na universidade comecei a ter dimensão de tudo que tinha perdido até então — as conexões, as amizades, as experiências e, mais importante, a oportunidade de me tornar uma pessoa aos poucos. O mundo que a Faculdade de Letras me abriu era vasto e novo e diferente, mas todo mundo parecia já ser uma Pessoa (trademark), enquanto eu ainda me sentia pequena demais, imatura demais, recém-parida. Esse medo (recorrente, conhecido) de não estar pronta para as experiências me manteve parada, presa à ideia de que a vida era linear e exata e bastava seguir os conselhos, ouvir as opiniões, continuar seguindo em frente; em alguma linha de chegada, eu pensava, me aguardavam os prêmios reais por ter feito tudo “certo”, por ter entregado exatamente o que as pessoas esperavam receber. Eu continuava perdendo, mas agora achava que precisava perder para ter um ganho maior, mais real, mais significativo lá na frente. Um ganho que, é claro, nunca veio.
Eventualmente ficou insustentável continuar cedendo, caminhando sem perguntar para onde eu estava sendo levada, ouvindo conselhos que eu sabia que não faziam sentido. Em algum momento de 2017 tive a coragem de escrever em um diário improvisado que eu tinha o direito de sentir meus próprios sentimentos, a primeira vez que não incluí um ponto de interrogação ou um “eu não sei” na afirmação. A memória é tão exata na minha cabeça — o aeroporto cheio, meu pai sem querer falar comigo, o caderno amassado no fundo de uma das bolsas de mão — que não consigo entendê-la de outra forma que não seja um corte profundo, um rompimento que estabelece um antes e um depois.
É claro que a minha vida não mudou em 2017, mas, ao mesmo tempo, é claro que a minha vida não continuou sendo exatamente como era. Na minha cabeça, a imagem era a de jogar uma pedra em um lago: as ondas ficando cada vez menores, imperceptíveis, mas a água ainda agitada, a pedra repousando invisível no fundo. O ano seguinte (2018) foi particularmente importante, com fins e começos que eu precisava viver: o ano em que terminei a faculdade e uma relação que existia principalmente na minha cabeça; o ano em que decidi começar o mestrado e o meu namoro atual. Mas eu ainda não sabia que estava começando a ser uma pessoa enquanto tomava todas essas decisões; eu não sabia que estava deixando algumas coisas para trás e ativamente escolhendo outras.
Em 2018, eu tropecei no Adieu to Norman, bonjour to Joan and Jean-Paul, comecei uma pesquisa que me deixava animada e encantada com o mundo, passei a sentir muitas coisas o tempo todo. Em 2018 eu entendi o peso que o olhar das pessoas tinha sobre a minha capacidade de olhar para mim mesma e como estar na internet o tempo todo era só o meu jeito de continuar buscando a validação de que eu sentia falta.
Mas foi só em 2019 que comecei a me sentir viva e a entender o que era uma vida. Foi só em 2019 que comecei a fazer um trabalho que fazia sentido e a me sentir verdadeiramente segura com as minhas relações. Foi em 2019 que eu tive o meu primeiro (#) Date Comigo Mesma, que passei a gostar de fato da vida acadêmica, que falei a frase “quero ser professora” pela primeira vez. Foi só em 2019 que comecei a ver valor em uma vida que era só minha, e que eu tinha que construir sozinha porque estava cercada por pessoas que nunca tinham feito nada daquilo.
E aí veio a pandemia.
Todo mundo fala sobre tudo que acabou durante a pandemia — e muita coisa acabou. Pra mim, porém, era um pouco difícil dimensionar os efeitos negativos desse período, ainda que eu soubesse que eles estavam aqui. Durante a quarentena, parecia impossível não tentar elaborar as recorrentes sensações de perda, mas os lutos se acumulavam muito rápido, às vezes mais do que eu conseguia senti-los, e a partir de um certo momento já não dava mais pra dizer o que era uma consequência particular e o que era uma consequência coletiva de estar cercada de morte o tempo inteiro. Ao longo desses dois anos, eu não soube explicar a sensação constante de estar tentando firmar os pés em areia movediça — mas eu sabia que tudo estava acabando o tempo todo.
A Anna escreveu, em uma newsletter recente, que só agora, em 2024, recuperou tudo o que tinha deixado na casa dos tios ainda em 2020. Ela disse que essa demora
“[…] é prova material da minha dificuldade, consciente e inconsciente, em me desfazer desse laço, a necessidade de manter vivo o pouco que restou daquela vida cuja continuidade fora interrompida em 14 de março de 2020.”
Até ler essa newsletter, acho que nunca tinha pensado na minha vida nesses termos — como algo interrompido; algo que fui obrigada a deixar de lado de uma hora para a outra, no meio do caminho. Talvez eu quisesse manter a ilusão de linearidade, buscando alternativas para o mundo suspenso que me encarava e exigia que eu continuasse seguindo — “o novo normal”, como a gente chamava. Sem me dar conta, caí nesse buraco em que as coisas ao mesmo tempo eram e não eram mais as mesmas: eram porque não podiam mudar em um tempo congelado; não eram porque, apesar do tempo congelado, a vida continuava acontecendo: uma espécie de vida de Schrödinger, em que era preciso continuar vivendo para saber se ela ainda existia ou não. A Anna fala: “Dentro dessas malas eu tenho 25 anos pra sempre.” E, de fato, desde o começo da pandemia eu desaprendi a contar a minha idade.
Em outra newsletter, de 2020, a Anna recorre aos diários do Kafka para comentar que, apesar da pandemia, continuava escrevendo diários, registrando momentos pequenos, guardando bobagens que, mais tarde, poderiam ou não ganhar algum significado. Entre o anúncio do que viria a ser a Segunda Guerra Mundial e o mundanismo de ir fazer natação à tarde cabe uma vida inteira, e a gente precisava continuar buscando essa outra vida possível se quisesse chegar inteira do outro lado. Diz um poema da Clara, já de 2023:
um homem imortal
ainda precisa
cortar as unhas
Em 2020 eu também criei um blog, e ele se tornou (como todos os blogs e newsletters que vieram antes ou depois dele) uma espécie de mosaico de tudo que me atravessou durante a maior parte da pandemia: a volta à escrita; a sensação de estar muito sozinha e não conseguir estabelecer relações duradouras; a vontade de apagar todas as minhas redes sociais e intensificar ainda mais o isolamento; as tentativas de cavar pequenas celebrações; o luto que não era diretamente ligado à pandemia, mas parecia ecoar o sentimento geral dela. Mas só em 2024 percebi que o que melhor ilustra a sensação de ter tido uma vida interrompida pela tragédia é o post em que eu falo sobre sentir saudade de andar de ônibus:
“Geralmente, esse [o estado constante de preocupação e solidão e caos] é o tipo de situação em que aceito me dar um descanso real: vou ao cinema, como cookies gostosos e pago caro em um potinho de sorvete, entro numa livraria, tomo um café diferente, caminho um pouquinho, tiro foto de qualquer coisa, espero dar a hora de voltar pra casa em um ônibus que não vai estar lotado. Hoje, não posso […] fazer nenhuma dessas coisas. Tenho saudade de estar lá fora, de estar em trânsito, não tanto pelos bancos revestidos de um material azul meio plástico […] [mas] por todas as outras coisas que esse espaço me proporciona: encontrar gente que amo, ver lugares, sentir uma brisa gostosinha no rosto, agradecer pequenas gentilezas, colocar os pés pro alto, sentir que não estou confinada a um lugar só.”
Essa saudade de mundo era também saudade de viver as coisas pela primeira vez — um exercício que eu já tinha tentado fazer anos antes, em 2015 (cf. Tracerizar), durante o meu primeiro ano de faculdade, mas que ficou abandonado no meio do caminho. Em 2020 eu tinha saudade de uma vida que eu ainda estava descobrindo e que tinha sido, agora entendo, interrompida. Mas em 2020 eu também ainda estava só começando a gostar de viver.
Aos poucos, e talvez sem querer, deixei essa outra vida possível tomar conta de tudo. O que a gente construiu na pandemia deveria ser só um trampolim para nos fazer chegar razoavelmente bem do outro lado daquele estado de exceção, mas, no meu caso, virou uma espécie de verdade inescapável, a única vida possível.
Era difícil continuar a fazer uma pesquisa, era difícil trabalhar com livros, era difícil pensar, era difícil estar viva. Eu já não conseguia (ou não queria, ou não via como, ou não via sentido em) lidar com o difícil, então minha solução lógica foi encontrar alternativas que me pareciam mais fáceis: mudar de área, fazer um trabalho um pouco mais mecânico, virar CLT em uma start-up, ter tantos freelas quanto era possível e mais alguns. No que mais eu ia focar? Ao longo de 2021 e 2022, trabalhei mais do que em todos os outros anos, sob a desculpa de que precisava construir uma vida que fizesse sentido, que fosse segura, que dependesse apenas de mim. O mundo lá fora não era confiável — tudo acabava, tudo continuava morrendo —, então eu só fazia alguma coisa quando me convencia de que ela estava sob o meu controle.
Foi só quando saí de casa que fui obrigada a encarar uma vida de novo — motivo pelo qual esse processo foi tão difícil, tão desgastante. Sair de casa era uma forma de conquistar individualidade, mas também implicava reconhecer que eu tinha um corpo, necessidades básicas, limites; que não existia controle, nem linearidade, nem segurança (cf. Crazy Ex-Girlfriend, “The end of the movie”). Eu queria estar cada vez menos no mundo, mas, quando você existe e faz coisas, isso não é possível. E eu tentei: os primeiros meses em que morei sozinha também foram os meses em que mais trabalhei, e, é claro, consequentemente, os meses em que a minha saúde mental, meus relacionamentos e minha pesquisa mais se deterioraram.
Em mais uma newsletter enviada dia desses, a Isadora também escreveu:
“Claro, alguns de vocês já estão gritando comigo que vivem assim [reduzindo o cotidiano a acordar, trabalhar e existir sem se afetar] porque o capitalismo suga toda sua alma e vontade de viver. Que o trabalho é exaustivo e o dinheiro é pouco e portanto você precisa viver a menor existência possível […]. Eu não discordo nem por um minuto que é isso que o capitalismo quer da gente […]. Meu problema é com a facilidade com que entregamos isso a ele.” (grifos meus)
Curiosamente, essa ideia da menor existência possível não tinha me ocorrido até então, mas foi a ela que recorri nos últimos três anos, mais ou menos. Minha vida era isto: acordar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, pedir delivery ou fazer qualquer coisa congelada, trabalhar, trabalhar, trabalhar, tomar os remédios, assistir Criminal Minds até pegar no sono, ter pesadelos, repetir. Eu dizia: essa é a única coisa que consigo fazer agora; essa é a única coisa que o sistema me permite fazer; eu não tenho energia e força pra pensar; eu só quero ficar em paz.
Ao longo desses anos, entendi ao ler a newsletter, fiz a escolha de ser cada vez menos afetada pelo mundo ruim e incerto que existia lá fora em nome de “proteger a minha paz”, mas não parei pra pensar que isso significava também deixar de ser afetada por tudo que era bom. O corte brusco da pandemia — essa interrupção de uma vida que eu estava aprendendo a querer viver — se transformou em um lembrete de que não valia a pena o esforço de querer estar viva se, no fim, tudo era morte e caos e solidão. Então eu parei de fazer o esforço, e as coisas se assentaram de outra forma, e de repente um tema recorrente na minha terapia era o fato de que eu não conseguia mais sentir as coisas — nem as boas, nem as ruins.
Em 2023, embora tenha percebido que queria estar viva, sempre que o mundo voltava a me convidar pra ele eu continuava assustada com a possibilidade de não ter nenhuma segurança. Em um longuíssimo jogo de “o chão é lava”, eu continuava pulando de uma superfície para outra, me agarrando a postes metafóricos, cansando o meu corpo e a minha cabeça, quando na verdade o chão não era mais lava, nem areia movediça; o chão era gelatina ou pudim ou qualquer outra coisa que talvez não fosse firme, mas pelo menos era densa e pouco assustadora. O mundo continuava me chamando, e eu continuava não indo enquanto o buraco no meu peito aumentava. Por que eu não vejo mais beleza nas coisas?, eu escrevia nos diários. Por que não consigo me emocionar mais?
“[…] não existe conhecimento e, portanto, não existe formar-se enquanto pessoa, tornar-se humano, sem o conhecimento do ruim. Não existe isolar-se dele e ainda viver.
[…] a existência é uma bagunça. Se relacionar como quer que seja, se apaixonar, criar uma criança, criar arte, sair pro mundo, fazer sexo, tudo isso é bagunça. Tudo isso é qualquer coisa menos sossegado.” (também da newsletter da Isadora)
No final do ano passado, juntei minhas coisas em uma mala e me mudei temporariamente para Portugal, para fazer um doutorado sanduíche que em algum momento me pareceu uma boa ideia tentar. Apesar de ter pousado em terras lusitanas em novembro, porém, só em janeiro eu tive coragem de sair de casa para fazer outras coisas que não fossem estritamente necessárias, ainda batalhando um medo de viver que eu já conseguia enxergar que não fazia sentido, mas ainda não conseguia superar de fato.
No último dia de dezembro, fiz uma entrada no meu diário:
“Estou sentada lendo uma fanfic [Green Light] em que as pessoas querem muito estar vivas e acho que é a primeira vez em muito tempo que sinto vontade de viver também.”
Depois, no dia 01/01, escrevi:
“A visão [dos fogos da virada de ano] me emocionou. Não sei quem vou ser daqui 366 dias, mas espero chegar lá ainda emocionada com tudo que o mundo pode me oferecer.”
Em janeiro, então, viajei sozinha para o Porto e passei uma semana quase 100% mergulhada na minha pesquisa, achando documentos e fotos e rascunhos e baralhos de tarô raros, ouvindo audiobooks no caminho para casa, pedindo pizza para comer na cama do hotel. Foi a melhor semana que tive sozinha em muito tempo.
E aí, como consequência de ter colocado o pé na água salgada de lágrimas de Portugal (cf. Fernando Pessoa, “Mar Português”), o mundo me lembrou de que voltar a sentir coisas boas também implicava voltar a sentir coisas ruins. No dia 31/1, fui comunicada que minha empresa passava por um layoff e fui desligada. Curiosamente, o dia 31/1 também foi o dia em que o Victor desembarcou em Lisboa, de modo que, embora parte de mim estivesse de volta ao buraco depressivo do não-dá-pra-ter-nada-bom-vamos-todos-morrer, a outra parte tinha apoio e decidiu tirar férias.
Agora, depois de mais de um mês desempregada, com o Victor já no Brasil e eu me adaptando a uma nova casa, finalmente consigo romantizar a demissão sem abrir uma aba de vagas do LinkedIn. Em uma entrada recente do meu diário, escrevi que “ela foi uma forma de me empurrar de volta para um mundo mais vivo, no qual tenho mais tempo para ser afetada pelas coisas”, uma visão me parece ingênua, mas não deixa de ser uma forma de construir uma narrativa menos trágica para a minha vida e os rumos que ela foi tomando. Afinal, preciso ficar em Portugal até maio, e não tenho absolutamente mais nada para fazer até lá que não seja a minha pesquisa de doutorado — a coisa que mais me obriga a ser presente e afetada, a viver.
Parece simplista tentar amarrar um texto — esta cronologia da depressão e de seus efeitos em mim — dizendo que agora entendo que é preciso escolher ser afetada pelas coisas e que isso não significa ser positivamente afetada, mas é um pouco por aí. Quando olho para a Amanda de 2014, esse fantasma que parece me perseguir desde a virada do ano, e quando vou até os registros da Amanda de 2014 (obrigada, blogger.com), o que mais vejo é essa renúncia inconsciente ao que eu jurava serem meus sonhos; esse esforço para me encaixar nos moldes que outras pessoas estavam ditando o tempo todo; esse medo gigantesco de simplesmente me apaixonar pelo que estava na minha frente e isso ser uma espécie de ruína inescapável. E talvez fosse (cf. o vídeo novo da Contrapoints), mas talvez isso não fosse tão ruim.
Viajar no tempo também é brincar de imaginar. Se cada escolha é uma renúncia (cf. Chorão, “Lutar pelo que é meu”), e se cada escolha abre uma nova camada de realidade paralela que jamais conseguiremos acessar, como ensinam os filmes e as teorias de ficção científica/física, então todas as vezes que a gente faz ou deixa de fazer uma coisa a gente pode mudar o futuro inteiro, em uma espécie de efeito borboleta não intencional. Mas o que é que faz diferença de fato? Se eu voltasse aos 16 anos e parasse de ter medo, o que teria mudado? Eu seria mais feliz? E se eu descobrisse, por a + b, que a vida que estou levando é a melhor vida que eu poderia levar, consideradas todas as realidades existentes, isso resolveria todos os problemas que fazem parte da minha vida de agora? Provavelmente não.
A Amanda de dez anos atrás estava aprendendo a mesma coisa que eu estou reaprendendo agora, e que, entre nós duas, a Amanda de 2019 foi a que melhor conseguiu executar. Isso não é um final amarrado e lógico, isso não significa que eu matei a charada e agora o problema ficou resolvido; é só outra forma de começar. A única coisa que eu posso fazer agora, além de ativamente escolher ser afetada pela vida, é torcer para que a Amanda dez anos no futuro tenha de fato aprendido a lição e não nos obrigue a passar por tudo isso outra vez.