ao longo da minha vida, desenvolvi uma obsessão pouco saudável por labirintos. gosto de culpar o borges por essa virada na minha personalidade (e também por outras coisas), mas a verdade é que o gosto talvez venha de muito antes: Teseu foi o primeiro mito que conheci, em um daqueles livros obrigatórios do ensino fundamental, e a primeira metáfora que desgastei para tentar explicar meus sentimentos e meu processo de escrita.
mas foi mesmo com borges, eu acho, que o labirinto ganhou uma dimensão verdadeiramente gigantesca, englobando não só os meus interesses e as imagens às quais com frequência recorro, mas também o meu olhar para o lado de fora. ele se tornou o começo e o fim de quase todas as outras imagens igualmente borgeanas que também passei a explorar exaustivamente: o universo, a biblioteca, o fundo do mar, os espelhos, os mapas. desde então, venho tentando empilhar tudo isso em um único lugar; montar esse mosaico, esse quebra-cabeça.
recentemente percebi que a olga tokarczuk me parece obcecada com coisas semelhantes. em sobre os ossos dos mortos, a linguagem é a astrologia: o céu, o infinito, a influência de tudo o que é grande naquilo que é pequeno. mas também o contrário: a rotina, o cuidado, as pequenas escolhas, a disposição dos objetos numa mesa, e o impacto de todos os detalhes na formação de uma imagem maior. como se recitasse gregório de matos —
Ao braço do mesmo menino Jesus quando apareceu
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.
Em todo o sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.
O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.
Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.
— e carregasse, também, o mesmo tom desafiador diante do absoluto, daquilo que é maior que nós. a linha que segue o romance não é uma seta, não aponta para lugar nenhum; a narrativa é um experimento entre a beleza do mundo, a tentativa de tradução da poesia, os encontros fortuitos, o motor do acaso. ela é, de certa maneira, uma tentativa de colocar sobre a mesma superfície as diferentes peças que constroem o universo:
Está claro que o grande está contido no pequeno. Não há dúvidas quanto a isso. Enquanto escrevo, existe uma configuração planetária sobre a mesa, o universo inteiro, se você preferir. Um termômetro, uma moeda, uma colher de alumínio e uma xícara de porcelana. Uma chave, um celular, canela e papel. E meu cabelo branco, cujos átomos preservam a memória dos primórdios da vida, da catástrofe cósmica que deu início ao mundo.
mas em correntes a expressão de torkaczuk se aprofunda. diante da ambiguidade do título, a viagem vai das estrelas para a terra firme: paramos dentro de um mapa, aprendemos a psicologia das viagens, vemos retratos de estações que já deixaram de existir. as vozes se multiplicam, como se estivéssemos, de fato, parados em um aeroporto movimentado; mas algo atravessa todos os contos do livro — algo físico, gráfico e pulsante. o novelo que nos amarra a todos; a corrente de água de Parmênides ou de Bachelard.
eu não sabia que este era um livro que mapeava a linguagem, que a corporificava de maneira tão literal. torkaczuk se dá ao trabalho de dissecar tudo que há de mais esquisito, grotesco, incomum — todos os sentimentos que nós não conseguimos compreender de fato, até vê-los transcritos por outra pessoa. e reforça: é preciso viver, mudar, sentir; é preciso colocar esse corpo para vivenciar e experimentar o mundo.
Eu quero saber e não me entregar à lógica. De que serve uma prova estruturada por fora em um argumento verdadeiramente geométrico; ela apenas cria uma aparência de uma consequência lógica e de uma ordem que agrada a mente. Existe um A e depois dele vem o B, primeiro as definições, depois os axiomas e afirmações numeradas, algumas conclusões adicionais e já se pode ter a impressão de que esse tipo de argumentação lembra uma gravura maravilhosamente desenhada num atlas onde se marca as partes seguidas cm letras e tudo parece tão claro e transparente. No entanto, continua-se a não saber como aquilo funciona.
saí de correntes direto para o atlas do borges, porque me pareceu apropriado continuar explorando, ir do corpo humano ao corpo do mundo. e borges, é claro, não constrói qualquer mapa: entre as fotografias, os pontos vermelhos que ele demarca no globo terrestre, as comidas e os livros, existe também o espaço dos sonhos e dos pesadelos, uma reflexão sobre mitos e histórias e o próprio ato de decidir viajar. é um atlas também de cicatrizes, e nesse sentido ele e torkaczuk parecem caminhar de mãos dadas. o que fica? o que é inescapável?
dentro de um balão, ele vê o azul do céu mas não fala sobre o azul do céu; fala, em vez disso, do que é invisível e maior:
Toda palavra pressupõe uma experiência compartilhada. […] não existe dor ou felicidade que sejam somente físicas, sempre intervêm o passado, as circunstâncias, o assombro e outros eventos da consciência.
preciso escrever a qualificação da tese de doutorado. nem parece que já faz dois anos que ingressei nesse segundo surto, porque muita coisa deixou de ser como era desde então. e, apesar dos prazos cada vez menores, minha cabeça não consegue se organizar o suficiente para priorizar a pesquisa.
parte desse trabalho é apenas aprender a unir paixões. dentre elas, o borges, os labirintos, os artifícios de linguagem que constroem prédios e sociedades no mundo dos sonhos. mas a outra parte é dar um jeito de atravessar o labirinto que sou eu mesma, as referências que juntei, o que eu acredito de poesia. essa é a parte mais difícil.
na semana passada, quando minha orientadora mandou uma mensagem perguntando se eu poderia substituí-la em uma aula porque ela positivou para covid, aceitei. o ato de aceitar foi uma surpresa também para mim. por acaso era uma aula sobre o meu poeta, então por que não voltar a falar — ensinar — sobre ele depois de quase um ano de silêncio absoluto?
poucas vezes me senti tão em casa quanto na última quinta-feira, na frente de uma turma, falando sobre surrealismo português. a sensação de conforto e tranquilidade foi um susto porque há anos decidi que não queria fazer da universidade a minha casa. uma mentira para mim mesma, talvez, dada a minha personalidade, mas, ainda assim, uma coisa que liderou as últimas decisões (sobretudo profissionais) da minha vida.
na frente daquela turma, no entanto, enquanto eles interagiam e eu ensinava, era como se algumas das linhas perdidas voltassem a se encontrar. de repente, a pesquisa não me parecia impossível, o processo de autoconhecimento que ela exige não me parecia impossível, a escrita e o equilíbrio não me pareciam impossíveis. por aproximadamente 1h30, as coisas estavam encaixadas em seus devidos lugares: eu, a sala de aula, o mário cesariny, os últimos livros que li, o mapa que me permite encontrar as saídas de mim mesma.
leituras recentes:
correntes, olga tokarczuk;
atlas, jorge luiz borges;
the cartographers, peng shepherd;
jujutsu kaisen #3, gege akutami.
filmes recentes:
emma, 2020, dir. autumn de wilde;
the good nurse, 2022, dir. tobias lindholm;
gray man, 2022, dir. anthony & joe russo;
luckiest girl alive, 2022, dir. mike barker.