arroz azedo e pintar o cabelo de rosa
ou: então é assim que é morar sozinha e passar pela puberdade ao mesmo tempo?
arroz foi a primeira coisa que eu aprendi a cozinhar do zero, quando ainda era pequena de verdade — tinha uns dez anos, talvez. o processo era metódico e, particularmente, um pouco chato: óleo, alho, arroz, água, sal. esperar. desligar quando a água evaporar e deixar a panela fechada por alguns minutos. os cuidados mais específicos vinham depois: não pode colocar a panela quente na geladeira, mas também não pode deixar o arroz ali, pegando sol. o aspecto do arroz azedo é todo esquisito, uma babinha grudenta com cheiro ruim. você olha na panela e parece normal, mas é só abrir a tampa pra ter certeza.
morando sozinha, tenho feito só uma canequinha de arroz na panela. dura um tempo bom, mesmo comendo todos os dias. semana passada, sem querer, me embananei e coloquei duas canecas do arroz. quase não coube, secou de um jeito esquisito, não ficou a melhor coisa do mundo. mas pelo menos ia render, pensei, contemplando um panelão cheio. uns dias depois, abri a tampa e lá estava o cheirinho característico. foi-se embora meia panela de arroz.
tenho evitado comprar comida que eu não vou comer imediatamente e tenho pensado mais sobre as coisas que coloco em casa. de todas as dificuldades de morar sozinha (várias), as que envolvem alimentação são as piores, pra mim. ficar calculando o vale-refeição e o preço das coisas no mercado. ter aquela sensação de que talvez não dê. lembrar de ir esquentar (ou fazer!) almoço e janta e café. pensar em alternativas pro que cozinhar. comer a mesma coisa vários dias porque a proporção pra uma pessoa ainda não está completamente clara. é esquisito.
e isso tudo num momento em que a minha relação com a comida já não está lá uma maravilha. venho falando disso na terapia — do desconforto com o meu próprio corpo, dos quilos a mais e de como isso vem afetando a minha autoestima, do modo como o meu cérebro agora sente culpa sempre que como fast food. talvez não seja nada demais, tento argumentar. não é como se eu estivesse pulando refeições pra ficar mais magra. mas também não é mais tão natural comer, preparar comida, pensar em comida.
algumas outras coisas também perderam uma aura de naturalidade, desde que mudei. parece muito tempo, mas a verdade é que ainda não fez um mês. é só uma quantidade verdadeiramente maior de atenção que posso dar às coisas, quando antes tudo acontecia mais ou menos no automático e do jeito de outra pessoa. ter uma casa é divertido, libertador, diferente. fazer as regras e impor os limites são duas novidades agridoces. eu não sei ser uma boa adulta, conto à minha terapeuta. parece que acordei num corpo que já é meu há muitos anos, mas eu nunca habitei de verdade.
não sou disciplinada, o que prejudica muito a construção de uma rotina mais ou menos saudável. preciso definir horas de trabalho, de descanso, de lazer. preciso ter tempo para comer e fazer exercícios. preciso priorizar o meu doutorado, porque a minha qualificação se aproxima e eu só tenho 6 páginas de ideias. tudo isso se perde no processo de ainda estar descobrindo como essas coisas estão acontecendo. quando foi que eu passei a precisar de exercícios? como assim eu estou fazendo um doutorado? não parece que eu decidi e vivi todas essas coisas.
é um exemplo clichê, mas vá lá: sabe aquela cena em De repente 30, quando a jenna acorda num apartamento que é dela adulta e ela não faz ideia de como foi parar ali? então. é a mesma coisa. do nada eu tenho peitões, um namorado sério, chegam contas no meu nome na minha casa. eu tenho um emprego — dois, na verdade. semana passada eu estava olhando o preço de uma passadeira colorida e medindo uma sapateira porque não queria continuar entrando com o pé sujo em casa (?) e há menos de um mês todo o meu dinheiro foi embora em um sofá azul. mas como foi que eu cheguei aqui? não sei. honestamente não sei. deve ter alguma coisa a ver com a terapia.
minha psicóloga já me contou que estou passando pela puberdade aos 25 anos. então foi assim quando vocês tinham 15 anos? é assim que é se perceber uma pessoa, se afastar da concepção dos outros de você, construir uma identidade? que processo esquisito, meu deus. é por isso que a gente precisa proteger o adolescente. e olha que eu só tô falando do que acontece dentro da minha cabeça — não consigo nem começar a estruturar o que acontece nas minhas relações.
tenho sentido mais coragem, também. que coisa estranha de escrever dizer assim, em voz alta. mas é verdade: agora me acho mais corajosa, mais preparada. não sei dizer pra quê. e é uma sensação profundamente estranha, também, porque durante anos meu tema de terapia foi sentir medo. tudo era sempre muito assustador. agora, não tanto. quer dizer, eu aluguei um apartamento em uma semana e de repente eu já não estava tão apavorada assim com a vida. i’ve been sleeping so long in a 20-year dark night and now i see daylight, aquela coisa.
isso tudo pra dizer que esse processo de ser mais corajosa está me fazendo pensar em pintar o cabelo de rosa. minha mãe nunca deixou, mas agora ela não pode dizer não. é a mesma coisa com a tatuagem gigante que tasquei no braço uma semana antes de sair de casa. ou com expressar a minha visão política na internet. ou com aturar opiniões que não solicitei. não tem como me obrigar a apagar, me jogar num desconforto gigantesco, me fazer sentir culpa. !!!!!!!!!!!!!, sabe? ter um apartamento é muito bom.
é uma loucura pensar “puts, que bosta, o arroz estragou” e então ter a consciência de que tudo bem. chato, é chato, mas passa. é só fazer outro. e isso vale pra tudo. é só fazer de novo. e de novo e de novo e de novo. eu não preciso me justificar, né? eu não preciso acertar de primeira. não tem ninguém constantemente sugerindo um jeito de fazer melhor aquilo que já está feito. sei lá, tenho me pegado sem palavras com mais frequência — do jeito bom. como se de repente eu recuperasse alguma coisa.
ora, ora, agora somos (de novo!) uma newsletter. quem diria? você talvez tenha lido alguma das minhas baboseiras em um blog, já faz algum tempo. mas você sabia que certas empresas o wordpress agora estão colocando anúncios bem no meio do meu textinho? fiquei com raiva. migrei pra cá. a vantagem é que dá pra acompanhar por e-mail. é só clicar no botão: